sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

"Como nos tornámos humanos?"

Para o Luís

Pretendo com este texto, deixar um breve resumo do que foi falado na conferência que ocorreu no dia 21 de Janeiro de 2009,na Fundação Calouste Gulbenkian, com o título “Como nos tornámos humanos?”, proferida pela professora Eugénia Cunha da Universidade de Coimbra.
Contributo de Darwin para o estudo da evolução.
A ideia de que os animais não são imutáveis já era discutida no século XVIII, mas ganha maior importância no século XIX com Charles Darwin (1809-1882) e uma das suas mais importantes obras A Origem das Espécies[1] (1859), em que explica que a evolução das espécies ocorre através de um processo designado de Selecção Natural. Aqui, apesar de ser discutida a evolução não só das espécies animais como também das plantas, Darwin evita abordar a temática da evolução humana, apesar de possuir dois cadernos de apontamentos referentes ao assunto. Este motivo viria a ser tratado posteriormente em Descent of man (1871).
Humanos e outros símios.
Darwin já afirmara que os humanos eram uns dos muitos símios. Mas então coloca-se a questão: o que nos distingue dos outros símios? Somos bípedes, temos grandes cérebros e colonizámos todo o Mundo. Mas esta resposta não é suficiente.
Somos de facto os únicos primatas bípedes. O Bonobo, por mais que se estique, não consegue ficar em pé, e com o bipedismo conseguiu poupar-se energia. Temos cérebros maiores (cerca de três vezes maiores) do que seria de esperar num primata de igual tamanho corporal. Mas sabendo que o cérebro é muito caro em termos energéticos, é necessário obter energia, que será conseguida através da comida (dieta), que é obtida através da locomoção. Está tudo interligado! Ingerir carne e alimentos cozinhados na dieta também possibilitou o aumento cerebral, mas este factor não é suficiente por si só. São várias as causas, como vamos ver, a actuarem para o aumento do cérebro. “O aumento do cérebro parece ter sido contrabalançado por uma concomitante redução do aparelho gastrointestinal”, também ele responsável por um enorme gasto de energia. Assim se explica que uma mudança na dieta poderá ter possibilitado o aumento do cérebro. Recentemente, foi descoberto um gene responsável pelo crescimento do cérebro. No entanto, o mais provável é que tenham havido várias alterações em muitos genes. Para este caso, um grande avanço foi dado com a sequenciação do genoma do chimpazé, que é o nosso parente mais próximo, como retratado num dos números da Nature em 2005. Estas alterações terão levado a que os nossos ancestrais com cérebros maiores, terão tido vantagens selectivas. No entanto, para além do genoma, bipedismo e tamanho do cérebro, há um outro factor que permite-nos distinguir dos outros símios, que é a linguagem. Não é possível exercer um pensamento estruturado sem uma linguagem mais complexa, o que leva a uma maior socialização. O gene FOXP2, ligado à linguagem, terá sofrido duas mutações sucessivas há 2 milhões de anos. Apesar de este gene também estar presente nos chimpazés, acontece que é expresso de maneira diferente.
Evolução Humana
Durante a palestra, muito tempo foi dedicado a esta temática, mas não pretendo alongar-me muito mais neste texto, tentando apenas realizar uma breve síntese das várias espécies humanas tratadas, juntamente com algumas informações.
África é considerada o berço da humanidade, e de facto, já havia sido proposto por Darwin, devido à proximidade com gorilas e chimpazés.
Os primeiros hominídeos apareceram a oriente do rifte africano. Toumai (siginfica esperança de vida – Hope of life); do Homem do Milénio (por ter sido encontrado em 2001) não se encontrou nenhum crânio, só peças craniais e fósseis de ossos que revelam bipedismo; Ardipithecus; Australopithecus afarensis (Lucy, é o exemplar mais conhecido) teria a estrutura de uma criança normal, 3,3M.A.; Australopithecus africanus, fóssil de uma criança com cerca de três anos; Paranthropus robustus, 2M.A.; Homo habilis (significa habilidoso, devido ao fabrico de utensílios de pedra) e Homo rudolfensis; Homo ergaster, realizam a primeira saída de África de um modo natural, pois sendo caçadores-recolectores, seguiram as rotas migratórias dos animais de que se alimentavam; Homo erectus (colonização da Europa); Homo antecessor, há mais de 750 000 anos, descobertos em Espanha e Itália; Homo heidelbergensis, descobertos na Alemanha esqueletos completos de 35 indivíduos, os ossos estavam dispersos e não estavam enterrados; Homem de Neandertal, nasceu na Europa e habitou também o próximo Oriente, praticavam enterramentos, o que revela consciência da morte e consciência do Eu. Sequenciação de ADN mitocondrial de vários Neandertais revela que estes não são nossos “avós”, separámo-nos há mais tempo. Convivemos muito tempo, ao mesmo tempo, e há a possibilidade de ter havido cruzamentos ocasionais. O Homo sapiens sapiens aparece no Quénia e na Etiópia, só chegando à Europa há aproximadamente 36000 anos, e já os Neandertais lá existiam.
E assim fica uma simples lista dos antepassados humanos. Contudo, nunca é de mais esclarecer (ou relembrar) que a evolução não é um processo linear, isto é, uma espécie não se extingue para originar outra. Pelo contrário, a evolução é ramificada, como os ramos de uma árvore, em que várias espécies podem coexistir, como foi o caso dos Neandertais e do Homo sapiens.

[1] De título completo: Sobre a Origem das Espécies através da Selecção Natural, ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Nota sobre o vocábulo "estória"

Existe uma tendência recente para diferenciar História de "estória". Aquela é o estudo geral dos sucessos da sociedade no passado. Esta seria uma narração mais ou menos fantasiosa baseada num facto verdadeiro e verificável, ou uma descrição verdadeira de um facto local ou pouco influente em relação à História Geral[1], quase sempre uma breve efeméride esgotada numa partilha informal de conhecimento e de pouca ou nenhuma relevância para a ciência. A verdade é que não encontrámos nenhuma referência à palavra nos dicionários e enciclopédias[2] que consultámos, excepto na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira[3] - onde vêm as palavras "estória" e "estórea", ambas com o mesmo significado: grafia antiga de história – e num exemplo que, a propósito da etimologia da palavra História, se dá no Dicionário Etimológico da forma antiga deste vocábulo, no que condiz com a informação da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira[4]. Sem base para apoiar a dissidência, não daremos, portanto, qualquer importância ao vocábulo. Aliás, se fantasioso, pode ser substituído por "lenda" ou "tradição". Se se referir a um facto local, chamar-lhe-emos com mais propriedade um acontecimento da "história regional", pois todo o facto tem interesse para completar a informação sobre os tempos em estudo. Neste sentido, a mera anedota, desde que seja real e confirmada na fonte, faz parte da História, não sendo de criar ou alimentar a necessidade de um novo vocábulo para estes factos aparentemente menos importantes. Dar preponderância à diferença é pouco democrático e honesto da parte de quem se propõe estudar seriamente o passado, pois a História não pode ter uma vertente “séria” e outra “pitoresca”. Todos os factos concorrem para o enriquecimento do saber e contribuem para uma visão humanizada do passado.

Ao lado deste significado, tem havido também a tendência de atribuir a "estória" um conteúdo literário, ou seja, a ciência que estuda o passado humano fica sendo a História, mas a narração de sucessos fantasiosos, ou com fins artísticos, é "estória". Apesar da diversidade de conteúdos, continua a não fazer sentido diferenciar a grafia dos termos. À semelhança do que se faz, por exemplo, em Direito (embora num sentido um pouco diferente), podem distinguir-se tanto pelo contexto, como pela maiúscula que leva a História quando ciência[5].


[1] Já temos ouvido dizer do Prof. José Hermano Saraiva que, na televisão, não fala da História, preferindo divulgar os factos lendários ou pitorescos da História nacional que foram alimentando o imaginário colectivo – seriam "estórias" da História – vocábulo a que não reconhecemos legitimidade para nomear essas realidades, como é expresso no texto.
[2] A palavra não foi encontrada nas seguintes obras: José Pedro Machado (coord.), Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Sociedade de Língua Portuguesa - Euro-formação, Valorização Pessoal e Profissional, Lda., Algés, 1989; Dicionário da Língua Portuguesa, 5ªedição, Porto Editora, Porto, s.d.; Dicionário Universal da Língua Portuguesa, 1ªed., Texto Editora, Lisboa, 1995; Lexicoteca – Moderna Enciclopédia Universal Círculo de Leitores, 1986; Nova Enciclopédia Larousse, Circulo de Leitores, 1998; nem sequer em José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 1989, pelo menos de algum modo separado do termo de que é uma forma antiga – "História".
[3] Vol.10, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa – Rio de Janeiro, p.493.
[4] “Séc.XIII: «contoull’en[d] a estoria maravilhosa»”, p.235.
[5] Ver, por exemplo, Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol.1, 11ªed., Coimbra Editora, 2001, pp.52-54. Quando "Direito" vem com maiúscula refere-se ao conjunto de normas que ordena a sociedade; mas quando vem com minúscula, já se refere a uma "faculdade" (direito) de cada sujeito tutelada pela lei. Isto porque, tanto no que se refere à História, como ao Direito, em português não existem dois termos para diferenciar os sentidos. Em inglês, no caso da lei, pelo contrário, há "law" e "right", Direito e faculdade.

Conferência - "Como nos tornámos humanos"

Pedido de divulgação:
"Realiza-se amanhã, dia 21 de Janeiro, às 18h00, no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian (Av. de Berna, 45 A) a conferência - COMO NOS TORNÁMOS HUMANOS - e será proferida pela Prof. EUGÉNIA CUNHA da Universidade de Coimbra.

O EVENTO TERÁ UMA COLECÇÃO DE CRÂNEOS DE HOMÍNIDEOS MORTOS E ENTERRADOS
HÁ MUITOS MILHARES DE ANOS AO VIVO E MUITA ANIMAÇÃO!

Poderá também assistir em directo através do site:
http://live.fccn.pt/fcg/ e enviar as suas questões(darwin@gulbenkian.pt) que o orador responderá no final da sessão"

Conferências "Darwin's Evolution"

Começam já no próximo mês, as palestras dedicadas à Evolução de Darwin, a realizarem-se na Fundação Gulbenkian, na Avenida de Berna, em Lisboa. Estas palestras serão proferidas pelos melhores cientistas na área da evolução, e terão tradução simultânea. Segue a agenda com as datas das conferências:
Série "A Evolução de Darwin" (c/ tradução simultânea)

13-Fevereiro Niles Eldredge, American Museum of Natural History US
Darwin: Discovering the Tree of Life

25-Fevereiro John Parker, Cambridge Univ UK
The Cambridge years: Henslows legacy, Darwin's inheritance

11-Março Olivia Judson, Imperial Colege UK
Glad to have evolved

25-Março Pietro Corsi, Oxford Univ UK
Just Before Darwin: the question of species during the 1850's

08-Abrl Lynn Margulis, Univ Massachussets US
Evolution on a Gaia Planet: Darwin's legacy

29-Abril Mark Stoneking, Max-Planck Inst. G
Human Evolution: The Molecular Perspective

13-Maio David Sloan-Wilson, Binghamton Univ. US
Evolution and Human Affairs

24-Maio Rosemary e Peter Grant, Princeton Univ. US
Evolution of Darwin's Finches

As Pupilas do Senhor Reitor

José das Dornas, velho agricultor, é pai de dois filhos, Pedro e Daniel. Pedro, o mais velho, é detentor de robusta figura, enquanto seu irmão mais novo, Daniel, em oposição, é uma frágil criatura de aparência.
Mediante estas características que adjectivam a compleição da prole, o pai prevê que Pedro tem todas as condições para seguir o seu trabalho nos terrenos, mas cuida do que poderá ser o futuro do seu outro filho. Com receio de que o franzino possa sucumbir ao trabalho do campo, entrega-o ao senhor Reitor, António de nome, para que lhe dê educação de modo a torná-lo um futuro padre.
De início, Daniel dá-se bem com as lições e revela uma enorme capacidade de aprendizagem, mas cedo se percebe que este não é o melhor caminho para um jovem, que já de novo, pretende passar o tempo com uma rapariga, Margarida. De modo a que o filho não perdesse o rumo aos estudos, o pai decide enviá-lo para o Porto, com o intento de ingressar no curso de Medicina.
O tempo passa e os filhos crescem. Pedro, com vinte e muitos anos, finalmente decide casar-se, com Clara, irmã da Margarida. Por essa altura, Daniel, seu irmão, regressa do Porto, já licenciado, e com ideias novas, que são estranhas para os da terra.
O pai comenta com um dos vizinhos, as ideias que o filho defendera na tese. Uma delas, que muita estranheza causa, é a dos homens serem macacos. O pai tentara explicar a evolução humana, conceito estranho para as gentes da terra, que não tinham tido acesso a uma educação digna, nem qualquer contacto com alguma iniciativa de divulgação científica. De facto, vivendo no interior, longe das grandes cidades, numa pequena terriola em que todos se conhecem, sem contacto com as novas ideias do exterior, o pouco conhecimento de que se alimentam é o dos evangelhos e da superstição. Devido a estas condicionantes, nem o pai consegue explicar, nem o receptor tem abertura de espírito para entender tais ideias. Segue o excerto:

“- [...] Mas o sr. João admira-se? E então se eu lhe disser que ele provou também que um homem é a mesma coisa que um macaco?
João da Esquina fechou com impetuosidade o livro dos assentos.
- Irra! Está a caçoar comigo, sr. José? Ele podia lá dizer semelhante coisa!
- Pergunte-o ao sr. Reitor, que assim o explicou; pergunte, se não acredita.
- Eu não, pois... Macaco! Então eu sou macaco? Então vocemessê é macaco? Então ele é macaco? Então nós somos... ora, isso não pode ser.”[1]

João Semana, o velho cirurgião da aldeia, mesmo esse tem contendas com Daniel acerca dos preceitos de exercer a profissão. É a medicina moderna, contra a medicina do velho cirurgião, a teoria contra a prática.
Um dia, Pedro leva Daniel a conhecer sua futura mulher, Clara, de quem está noivo. Daniel, após tantos anos de ausência, não reconhece que Margarida, irmã de Clara, é a mesma rapariga por quem nutriu sentimento de paixão durante a sua infância.

Este irmão mais novo, jovem sempre apaixonado, encanta-se com tantas raparigas, e por supérfluos sentimentos se deixa levar. Até por Clara, noiva de seu irmão Pedro se julga apaixonado. Como terminará esta história? Estará mesmo Daniel destinado à sua Margarida? Será que desposará Clara? De que modo esta confusão de sentimentos irá afectar a relação dos dois irmãos? Aproximar-se-á uma desgraça junto desta família?
Coíbo-me, neste momento, de mais revelar sobre a obra, deixando entregue ao leitor o prazer de mais saber sobre a estória.
Boas leituras.

[1] Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor, Obras Completas de Júlio Dinis, nono volume, Círculo de Leitores, 1980

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

História Regional de Portugal III - A Vida quotidiana na Ericeira de 26 de Setembro de 1909 a 31 de Agosto de 1916 (2ª parte)

Em 1898, a Mala da Europa levava até um subtítulo indentificativo da sua missão: "Semanário ilustrado destinado ao Brasil e colónias portuguesas" (idem, p.12). O seu objectivo, ao lado da qualidade dos textos e das imagens, terá concorrido para o seu sucesso. É preciso lembrar que não havia meios de comunicação como actualmente, pois nem o telefone era ainda comummente usado nas casas; por isso, a imprensa era um veículo privilegiado de notícias e meio de contactos à distância. No periódico chegaram a colaborar Lopes de Mendonça, Manuel Arriaga, Teófilo Braga, Ana de Castro Osório, Tomás Ribeiro, entre outros. Um desses outros colaboradores, conhecido sobretudo na sua terra natal, era Jaime Lobo e Silva, o correspondente da Ericeira para a Mala da Europa. As notícias das províncias portuguesas eram breves anotações dos acontecimentos actuais mais importantes, por onde se podia ver um vivo retrato do quotidiano. Nas notícias redigidas por Lobo e Silva há festas religiosas, corridas de touros, bailes, inaugurações de obras públicas, etc. A Mar de Letras Editora publicou em 1998 uma recolha da sua colaboração para a Mala da Europa, que é mais um contributo para a compreensão da vida regional no passado português. "A Vida Quotidiana na Ericeira nos Começos da I República", que inclui textos introdutórios sobre o periódico e o ericeirense, reúne as breves notícias da vila desde a edição de 26 de Setembro de 1909 até à de 31 de Outubro de 1916. Jaime d'Oliveira Lobo e Silva (09/11/1875 - 11/09/1943), natural da Ericeira, foi militar de 1895 a 1907, colaborou na Mala da Europa de 1909 a 1916, foi escriturário da Escola Académica de Lisboa de 1917 a 1922, em 1923 está na Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, onde fica até à morte, e ainda ajudou a organizar o arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, nos anos '30. Dele disse Horácio Gorjão, um amigo, na edição d' O Concelho de Mafra, de Dezembro de 1956: "Vejo-o no seu escritório da Misericórdia da Ericeira, junto ao velho relógio inglês de pêndulos, rodeado de livros tocados pelos anos, ante o cinzeiro pejado de intermináveis pontas de cigarros. Oiço-o falar com aqueles que, na grandeza ou na miséria da vida, iam insensivelmente perpassando naquele ambiente calmo, como se o tempo houvesse ali parado (...). (...) E cá fora, ele era o Mestre Jaime, da Ericeira burocrática, o homem que registava as crianças e as vacinava, o procurador, o turismo, o cicerone, o homem que tudo resolvia e tudo simbolizava e naquela modesta banca da Santa Casa da Misericórdia insensivelmente fizera o centro da vida relativa e oficial. Mas tudo isto se escondia atrás de uma modestia teimosa, tão sincera que ao ouvi-lo falar-me da sua mocidade, dos seus amores, das coisas que gostava, daquilo que simplesmente o fazia feliz, com tão pouco e com tão grande contentamento, eu me sentia pequeno na vanglória quotidiana." (A Vida Quotidiana na Ericeira, p.19).

Excertos:

"Ericeira, 19 de Setembro [de 1909 e para a edição de 26 desse mês]
O Sr. António da Costa Gaspar está tratando com a companhia dos telefones para ver onde se pode organizar a ligação daqui com a rede geral de Lisboa. Oxalá se consiga tal melhoramento, de grande alcance para esta localidade. (p.29)
(...)

Ericeira, 1 de Novembro [de 1911 e para edição de 5 desse mês]
Realiza-se hoje, Dia de Todos os Santos a feira anual do Livramento (Azueira), partindo para ali, de passeio, algumas famílias desta vila.
Vai partir para Maceió (Brasil) o reverendo padre Sangreman Henriques, pároco nas Caldas da Rainha, e que há anos paroquiou tão bem a vizinha freguesia de Santo Isidoro.
Terminaram ontem na Igreja Paroquial desta vila as solenidades do Terço do Rosário que durante todo o mês ali se realizaram, sendo a parte musical desempenhada por um grupo de meninas da colónia balnear e desta vila, coadjuvadas por uma distinta organista.
Também ali se realizou, no dia 29 último, a Festa do Sagrado Coração de Jesus, havendo missa solene de Exposição, sermão e de tarde Te Deum.
Já regressou do Gerês o nosso amigo Henrique Franco Dias, que nos diz achar-se quase restabelecido. Hoje foi ele de automóvel do também nosso amigo José António Lopes, de passeio à Feira do Livramento, aproveitando a ocasião para ali comprar algumas juntas de bois, que tencionam remeter para a importante roça que o Sr. Lopes possui em S. Tomé; vai agora administar aquela roça o Sr. Barata, um encarregado que merece ao Sr. Lopes toda a confiança e simpatia. (p.84)

Ericeira, 3 de Setembro [de 1913 e para edição de 7 desse mês]
Realizou-se no dia 31 último a anunciada corrida na praça desta vila. O gado cumpriu e os amadores houveram-se relativamente bem, estando a praça à cunha. A corrida foi dirigida pelo nosso amigo José Fino, que mostrou bem a sua competência para tal cargo. (...) No próximo dia 14 deve realizar-se uma outra corrida, mas esta promovida por um grupo de toureiros profissionais de Lisboa. Espera-se também grande concorrência.
No dia 1 do corrente realizou-se a abertura da época da caça neste concelho. Organizaram-se vários grupos de caçadores desta vila, sendo abatido grande número de peças de caça. À noite alguns desses grupos reuniram-se em casa do nosso amigo Jaime Espáris Neves, onde este amador da arte venatória lhes forneceu um abundante jantar (...)." (p.123)

Fontes:
  • Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, vol.9, pp.931-933 e vol.15, p.982;
  • Nova Enciclopédia Larousse, Círculo de Leitores, vol.9, p.2638;
  • Guia de Portugal - Lisboa e Arredores, Fundação Calouste Gulbenkian, pp.569-572;
  • A Vida Quotidiana na Ericeira nos Começos da I República - vista através da correspondência de Jaime Lobo e Silva para a "Mala da Europa", Mar de Letras, col. Lugares de Memória, 1998.
Nota: A imagem reproduzida acima vem da capa d' A Vida Quotidiana na Ericeira e é uma montagem de esboços de Joaquim Marrão com um quadro a óleo (representando Lobo e Silva) do Dr. António Bento Franco, do Arquivo Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

História Regional de Portugal III - A vida quotidiana na Ericeira de 26 de Setembro de 1909 a 31 de Agosto de 1916

A Ericeira é uma vila marítima portuguesa pertencente ao concelho de Mafra e ao distrito de Lisboa. Tem praia, aliás muito conhecida, um pequeno porto de pesca, uma nascente de água mineral e alguns monumentos que, à semelhança de outros no nosso País, nos recorda a beleza do nosso passado - por exemplo, um pelourinho manuelino, a Igreja de S. Pedro - restaurada no tempo do Magnânimo -, um cruzeiro de 1782, a ermida de Santo António - com azulejos de 1789 representando este Santo e também a Nossa Senhora da Boa Viagem -, e um forte do tempo de D. Pedro II. Regista ainda a memória dessa terra alguns acontecimentos importantes como o embarque da família real para o exílio, após a revolução de Outubro de 1910 - que celebra um século no ano que vem -, o estabelecimento da corte de um D. Sebastião regressado, cujo verdadeiro nome era Mateus Álvares, morto no cadafalso em 1584, e o desembarque do Prior do Crato que vinha derrubar Filipe de Espanha. A vila, que em 1991 contava cerca de 4500 habitantes (N.E.L., v.9, p.2638), é muito antiga - data de 1129 um foral dado por D. Frei Fernando Rodrigues Monteiro, grão-mestre da ordem de Avis, depois confirmado por D. Dinis e renovado por D. Afonso IV e D. Manuel. Dela diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (c. 1940), v.9, p.932: "A Ericeira é uma praia fartamente concorrida no verão. A pov. fica apinhada no alto de uma arriba, num emaranhado de pequenas ruas, em volta de uma praça (Jôgo de Bola). Sobre o Oceano levantam-se alguns terraços. As praias de banhos são duas, a do Norte a do Sul, abrino-se entre elas o portinho da Ribeira, com os cais em declive, onde varam as embarcações pesqueiras. Sobranceiro à praia há um forte, que foi edificado por D. Pedro II. Na costa, entre os rochedos, há curiosas furnas, produzidas pelos desabamentos da costa e a erosão marítima." Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895) dedicou a esta terra um romance: Tristezas à Beira-Mar, 1866 e Raul Brandão faz-lhe uma descrição como colaborador do Guia de Portugal (1ºvol., 1924, pp.570-571, cujo animador principal era Raul Proença (1884-1941), director e coordenador). Arreliado, o poeta satírico Nicolau Tolentino de Almeida (1740-1811), desabafava: "Contra o mal que me têm feito/Raivosos caniculares/Me oferece a fresca Ericeira/Seus claros, sadios mares. (v. o mesmo Guia, p.569)". Apresentada ou recordada que está a vila da Ericeira, permitimo-nos avançar para o assunto principal. Uma das mais importantes fontes para o estudo das terras, e especialmente para quem se debruce sobre as mal-estudadas e pertinentes matérias da História Regional, é a imprensa. Divulgando acontecimentos nos vários locais do Mundo, quer fossem novas descobertas científicas, quer fossem novidades na Arte ou outras, ficaram-nos como o espírito das épocas passadas, reflexo das preocupações e sensibilidades dos nossos maiores, tal como nós nos nossos jornais e revistas estamos deixando as nossas. Neste contexto, o jornal semanário "Mala da Europa", fundado em Agosto de 1894, "com edição para o Brasil e possessões portuguesas" (G.E.P.B., vol. 15, p.982), tinha a função de dar a conhecer aos portugueses espalhados pelo Mundo notícias sobre os seus compatriotas. "A intenção era, agora, a de estreitar relações entre «Portugueses de todos os continentes». Mantinha-se, contudo, o essencial da anterior atitude perante a vida política: liberal, patriótica, independente e suprapartidária. (...) Desde o primeiro número, uma secção local referente à metrópole, com subtítulos de cidades e vilas portuguesas, e uma outra "Através da Europa", ocupavam lugar destacado em termos de espaço (...). À partida, a intencionalidade informativa (e não tanto interpretativa) era dominante: tratava-se de dar a conhecer aos Portugueses espalhados pelo mundo notícias dos seus compatriotas que viviam noutros lugares - com destaque, naturalmente, para os do Portugal metropolitano -, dos seus conterrâneos cujo contacto se perdera na distância. O estreitar de laços entre as comunidades portuguesas era conseguido pela fixação e difusão de fragmentos de memória local e regional, memória imediata dos homens , de pequenos eventos da vida quotidiana, de afectos - a alimentar a saudade da terra natal." (A Vida Quotidiana na Ericeira, pp.10-11). (Continua...)

Fontes:
  • Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, vol.9, pp.931-933 e vol.15, p.982;
  • Nova Enciclopédia Larousse, Círculo de Leitores, vol.9, p.2638;
  • Guia de Portugal - Lisboa e Arredores, Fundação Calouste Gulbenkian, pp.569-572;
  • A Vida Quotidiana na Ericeira nos Começos da I República - vista através da correspondência de Jaime Lobo e Silva para a "Mala da Europa", Mar de Letras, col. Lugares de Memória, 1998.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Washington Irving

A editora Tinta da China publicou recentemente um conjunto de contos do autor norte-americano Washington Irving. A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos saíram em Novembro de 2008. Washington Irving nasceu em Nova Iorque a 3 de Abril de 1783 e faleceu na mesma cidade a 28 de Novembro de 1859. Foi advogado, mas deixou a profissão para se dedicar à escrita, após o sucesso de History of New York. A partir de 1819 e até 1820 publicou The Sketch Book of Geoffrey Crayon, Gent, que inclui os célebres contos Rip van Winkle e The Legend of Sleepy Hollow, este já publicado em português pela Europa-América. O mesmo conto foi transposto para o cinema em 1999, com Johnny Depp e Christina Ricci nos papéis principais. Estes contos são de todo o interesse não só por causa da sua originalidade, mas também por reflectirem uma modernização da narrativa operada pelos inícios do século XIX em todo o Mundo (lembre-se, por exemplo, o início do Romantismo) e também nos Estados Unidos. Para quem não quiser abdicar do estilo original do autor estrangeiro, a obra está também publicada pela Penguin Classics.
Para uma síntese biográfica, v. site das Edições Tinta da China: http://www.tintadachina.pt/author.php?code=d773f00f5734610b4a8c09716aff19e0.
Fonte: Lexicoteca - Moderna Enciclopédia Universal, Círculo de Leitores, vol.10, p.277.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Significados I

Geriatria – s. f. medicina da velhice[1]
Pediatria – s. f. medicina das crianças[2]

Escrevo este post como reflexão sobre como podemos, por vezes, ser iludidos pelo senso comum. Atendendo ao substantivo pediatria, acima mencionado, sabemos que recorrendo ao mesmo prefixo pedo – criança – é possível chegar à palavra pedofilia – s. f. atracção sexual mórbida do adulto pelas crianças[3].
Noutro dia, numa conversa, alguém tentou achar o oposto de pedofilia e definiu-o como "gerofilia", o que parece fazer sentido. Parece... mas está errado. Recorrendo a um dicionário conclui-se que, de facto, o termo correcto é gerontofilia – s. f. apetência sexual patológica por velhos[4].

Olhemos agora para um exemplo prático da literatura, em que se aplica este exemplo:
“ [...] circulam entre nós histórias igualmente derivadas dessa mesma solidão, mas estas relativas a escândalos sexuais diversos, homo e hetero, pedófilo e gerontófilo, não interessa, isso é tudo abafado.”[5]

[1] Dicionários “Editora” - Dicionário da Língua Portuguesa – 5ª edição, Porto Editora
[2] Idem
[3] Ibidem
[4] Ibidem
[5] Clara Pinto Correia, A Arma dos Juízes, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2002 – pp. 241-242

A Arma dos Juízes

Nesta obra de 2002, de Clara Pinto Correia, intitulada A Arma dos Juízes, reaparecem as personagens de uma outra obra anterior – Adeus, Princesa (1985). De facto, Joaquim Peixoto, Bárbara Emília Frutuoso e Sebastião Curto voltam a encontrar-se, agora em Lisboa.
Leninha, estranha a ausência no trabalho de sua colega Manuela, esposa de um poderoso Juiz. Assim, decide chamar Sebastião e procurar a sua amiga em casa. Ao chegarem, e ao aperceberem-se da calma que assola o local, Sebastião decide entrar na casa e descobre que fora cometido um crime macabro. Sendo fotógrafo, automaticamente recolhe imagens do sucedido e posteriormente convida o seu amigo jornalista Joaquim Peixoto para investigar e escrever sobre o horrível acontecimento.
Ao longo do enredo, conhecemos as razões do sucedido e as complicações que daí advêm. Com o desenrolar da estória, a trama adensa-se, com muito mistério e conspirações à mistura. Os capítulos intercalam-se simultaneamente entre o presente e o passado, permitindo-nos conhecer melhor a história das personagens principais.
Além disso, esta obra é também um produto da reflexão sobre o estado do jornalismo, a dependência de fármacos pela população, o frenesim que vivemos em sociedade e suas consequências.

Sugestão:
Clara Pinto Correia, A Arma dos Juizes, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2002